Crônica: Hoje conheci Carlos

15/04/2025

Conheci Carlos numa terça-feira, 8 de abril de 2025. Cinquenta e cinco anos, um gaúcho de São Valentim, lá no norte do estado. Aos 31, descobriu o atletismo, o talento nato para a velocidade dos 100 e 200 metros. Mas algo o incomodava, uma sede por mais. E então, sem querer nada demais, sem pretensão alguma, como quem diz "não estou fazendo nada mesmo", Carlos começou a correr escondido. Cinco quilômetros iniciais, um segredo silencioso que se tornou um alívio para a alma.

A solidão o acompanhava, a falta de parceiros para celebrar os pequenos e grandes triunfos. Em 2019, encontrou o "Sexto Sentido", um grupo de corredores de rua, e sentiu o calor da amizade, a força da companhia. Mas a pandemia, em 2020, interrompeu o ritmo. O confinamento, as máscaras, a impossibilidade de treinar com os amigos. Foi nesse momento que um telefonema mudou tudo. Um convite para uma corrida na praia, clandestinamente, sob o manto da necessidade de movimento. Cinco quilômetros, depois sete. E então a tragédia: a perda da esposa, enfermeira, companheira de vida, sonhos interrompidos por um infarto repentino. A corrida, antes um escape, tornou-se um refúgio, uma forma de enfrentar a dor. Correr escondido tornou-se uma oração silenciosa, um ato de superação na mais profunda tristeza.

Em 2021, férias com amigos, ouvia dos seus amigos sobre o treino feito 60 quilômetros. Incrível! Uma brincadeira lançada ao vento: "Ano que vem corro uma ultramaratona com vocês!". Risos, descrença, mas em seu coração, Carlos já sentia a chama acesa. A ultramaratona não era mais uma fantasia. Começou a treinar 21 quilômetros, cada prova completada era um triunfo, um ato de rebelião contra a dor, uma afirmação de vida.

Um dia, "sem fazer nada mesmo", se aventurou em uma trilha, debaixo de chuva e frio. Onze quilômetros entre trilhas, uma prova de fogo que o definiu. O velocista que antes se destacava nos 100 e 200 metros, descobriu seu verdadeiro habitat natural: as trilhas.

Em 2022, de 11 passou para 22 quilômetros. Terrenos difíceis, exigem técnica, superação constante. Buracos, pedras, morros íngremes. Ele se preparava para sua primeira ultramaratona. Cinquenta e cinco quilômetros de pura adrenalina, uma prova perigosa, com precipícios e cordas. Os organizadores até temeram por sua segurança. Completou-a, mas o susto serviu de alerta para o próximo impulso.

A partir de então, toda vez que sentia a preguiça falar mais alto, "sem estar fazendo nada mesmo", Carlos se lançava em uma nova ultramaratona. Era uma necessidade visceral, a busca por um pertencimento, por uma prova constante de sua força. Desafios de 21 e 42 quilômetros na maratona Internacional de Porto Alegre experimentou e 80 quilômetros, cruzando toda a costa gaúcha em uma prova chamada TTT que completou em nove horas e meia.

Em 2022, a audácia de uma ultra de 226 quilômetros, finalizada em 51 horas e meia foi completada, para esse resultado se colocava a treinamentos de aproximadamente 120 quilômetros semanais, sem treinador, apenas a intuição, a escuta do seu corpo.

Em 2023, o Brasil se tornou seu palco. Oitenta quilômetros em Minas Gerais, a conquista do topo da Pedra da Mina, a quarta maior montanha do Brasil, em 26 horas, uma travessia entre Minas, São Paulo, Espírito Santo, com 5.000 metros de altimetria. A emoção de assinar o livro no caderno do cume.

Uma ultramaratona de 217 quilômetros, de Canela a Farroupilha, a "Corrida do Caravaggio", revivendo o trajeto que seu avô fizera a cavalo anos atrás, concluída em 43 horas, uma homenagem carregada de afeto.

Ao longo dessa jornada, Carlos aprendeu uma lição preciosa: cada prova é única, um momento para ser degustado sem a pressão da repetição, sem comparações, apenas a experiência pura e inesquecível. A prova que se repete perde o encanto.

Em 2024, a Patagônia argentina, o famoso El Cruce com 100 quilômetros de desafio, entre Vulcão Lanín, gelo, frio intenso, adversidades inúmeras, mas a perseverança o guiou até a linha de chegada. Porque, como sempre dizia, "se não estou fazendo nada mesmo...", então vou completar esta prova, mais uma vez, com a força da alma e a convicção de que superar limites é a única maneira de viver a própria vida intensamente.

Dia 8 de abril de 2025, conheci Carlos, o Carlos que correu 226km na maior praia do mundo, mas com um detalhe, nascido com leptospirose, diagnosticada somente aos 18 anos, sua infância e adolescência foram marcadas pela perda gradual da visão, culminando na cegueira aos 20 anos. Em casa, engolido pela escuridão, sentiu o peso do fim, a falta de perspectivas, a ausência de acolhimento. Mas uma visita mudou tudo. Um convite para Porto Alegre, a chance de uma vida diferente. Embora duvidasse, Carlos, como quem diz "não estou fazendo nada mesmo", abraçou a oportunidade. Na capital gaúcha, aprendeu braile, fez cursos, trabalhou como telefonista e na câmera escura de um hospital. Em apenas 40 dias, já se sentia independente, capaz de visitar a família, compreendendo que, como todos, precisava apenas de adaptações para superar as barreiras impostas pela sua condição. E foi assim que a trajetória esportiva começou.

O futebol, primeiro. Depois, a corrida, a velocidade, com um guia ao seu lado. Carlos descobriu que a única diferença entre ele e os que enxergam é o preconceito, a barreira que ele transpôs com força e determinação. Casou-se, separou, investiu em imóveis, construiu negócios, conheceu um novo amor. A vida, um ciclo contínuo de conquistas e perdas. Carlos me disse que a gente só se sente inseguro quando não se prepara, que disciplina e foco são pilares para alcançar nossos objetivos. E que o único obstáculo real em sua vida não foi a Pedra da Mina, a quarta maior montanha do Brasil, mas sim o preconceito.

A superação para ele é uma constante. Treina todos os dias entre corrida e musculação, provando que aos 55 anos é capaz de almejar sem titubear desafios como 25 km + 42 km no Rio do Rastro. Cada queda, cada obstáculo superado é uma prova de sua força. A vida, segundo Carlos, é uma trilha cheia de buracos, onde escorregamos, levantamos, pulamos, nos agarramos às oportunidades, sempre caminhando em direção a um objetivo. A história de Carlos é um manifesto de resiliência, a prova de que a cegueira não o impediu de enxergar o mundo com clareza, de superar desafios inimagináveis, de buscar, a cada dia, novos horizontes, de transcender limites autoimpostos e preconceitos alheios. E, para ele, como para todos nós, a vida é uma ultramaratona na qual a cada quilômetro conquistado, se revela um novo horizonte a ser alcançado. Afinal, "se não estou fazendo nada mesmo...", então vou fazer algo extraordinário.


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